
Cinema, arquitetura, fotografia e até mesmo a sociologia balizam as obras do paulista Jorge Bodanzky, o filho de livreira e engenheiro. Retrospectiva de parte da obra está reunida na exposição Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985. É justo no Museu Nacional da República da capital em que realizou estudos na Universidade de Brasília, sob orientações de figuras como Amelia Toledo, Luis Humberto e Athos Bulcão (no flanco das artes plásticas), que o ilustre filho de austríacos vira tema central de exposição com curadoria de Thyago Nogueira, sob assistência de Horrana de Kassia Santoz e pesquisas de Ângelo Manjabosco e Mariana Baumgaertner.
Com bolsa para estudos na Alemanha (Ulm), em 1966, ele voltou ao Brasil dois anos depois de se ver obrigado a deixar a carreira acadêmica em Brasília (1965). Destacado para estudos em arquitetura, ainda na UnB, foi estimulado a se bandear para o cinema, sob a influência de pensadores do meio como Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet. Com filmes em super-8 e fotografias, há 12 anos, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, Bodanzky é celebrado, na mostra, com obras do acervo fotográfico para publicações como Íris, Realidade e Manchete.
- Leia também: Fundação Athos Bulcão terá uma casa definitiva na capital federal
- Leia também: Experimentações gráficas marcam obra em exposição de Rinaldo Morelli
Entre os trechos de filmes a serem apresentados — em lote que inclui Hitler, III Mundo; O profeta da fome, Os Mucker e Igreja dos oprimidos — estão os de Iracema, uma transa amazônica (codirigido por Orlando Senna), finalizado em 1974 e censurado no Brasil até 1980, quando consagrado no 13º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Curiosamente, o filme que contesta a grandiosidade do milagre nacional, a cada exibição no exterior, recebia, à época dos militares no poder, telegrama do Itamaraty, que indicava: "Esse filme não representa o Brasil". Para além de conceitos de conquista e abandono, os filmes de Bodanzky (que contou com parcerias junto a Helena Salem e Wolf Gauer) tratam de lutas pela reforma agrária, da lida com a violência no campo, de conflitos com militares, assimilações culturais e ainda causas do operariado. A mostra prossegue até 21 de setembro, com visitação de terça a domingo, das 9h às 18h30.
Entrevista // Jorge Bodanzky, cineasta e fotógrafo
O que mudou em termos de exploração do trabalhador, hoje em dia?
Não mudou muito, antigamente havia uma resistência muito grande contra a ditadura militar, só que havia também uma repressão muito grande. Hoje em dia, você tem as organizações, por exemplo, indígenas, que se manifestam e lutam contra essa injustiça que está acontecendo com eles. Acho que a luta social no Brasil apenas mudou de tática, mas ela existe, ela está aí.
A tecnologia daquele período em termos de aparatos só desfavorecia?
Durante a ditadura militar, período retratado na exposição, havia muita resistência. Por exemplo, na área de cinema, havia cineclubes, que eram muito organizados e que exibiam filmes nos sindicatos, nas comunidades eclesiais de base, nas agremiações estudantis. Havia uma grande circulação dos filmes que eram proibidos e dos filmes que serviam para uma discussão política, como os meus. Eu não acho, pelo fato de você ter mais facilidades hoje de poder se comunicar, que isso melhorou a qualidade da comunicação. Ao contrário, acho que hoje a situação é muito mais confusa, muito mais complicada do que era quando nós lutávamos contra um regime militar. Havia censura, prisões, mortes, mas havia uma resistência bastante organizada e com um objetivo claro. Hoje, as coisas são muito complexas, muito confusas e fica difícil comparar a forma de resistência hoje com o que havia na época da ditadura militar.
Que grandes contribuições assimilou no teu itinerário intelectual? Quem abasteceu (ajudou a formular) teu olhar?
A minha influência, na realidade, são dois cineastas importantes. O primeiro é o Jean Rouch, antropólogo e cineasta, que utilizou pela primeira vez a câmera blimpada e o gravador. Poderia gravar simultaneamente o som com a imagem. Aí, se criou o cinema-verdade, o cinema vérité. Eu, inclusive, usei o mesmo equipamento que o Jean Rouch usava na época também. Outra influência foi o cineasta paraibano Linduarte Noronha, com o filme fantástico dele, Aruanda, que me mostrou que era possível fazer um cinema simples, direto e, ao mesmo tempo, profundamente social, com elementos muito claros e diretos. Me inspirou. Eu disse, poxa vida, esse cinema que o Linduarte faz, eu posso fazer também. Outros companheiros que colaboraram nos meus filmes, não colaboraram exatamente como uma inspiração. Como colaborador, tem um muito importante, com quem eu comecei a fazer meus filmes como diretor, que é o Wolf Kauher, além de companheiros como Hermano Penna, Orlando Senna, Antunes Filho e Maurice Capovilla.
A ditadura teve algum efeito a ser ponderado? O olhar antigo traz pouca dicotomia e deixa a discussão de ado pouco sana?
Eu não vejo a discussão política na época da ditadura pobre. Ela era pobre pelo lado oficial, mas não pelo lado da resistência. E eu diria que ela era mais contundente e mais clara do que é hoje. Hoje, é muito difuso, muito complexo, com muita informação falsa. Isso confunde as pessoas. Eu diria que hoje o ambiente da oposição é mais pobre do que era na época do relatado na minha exposição, a ditadura militar de 1964 a 1985.
Por que há certa fixação em para-brisas (risos)?
A questão dos para-brisas é bem interessante, porque eu trabalhava como repórter fotográfico para a imprensa e cameraman para as tevês estrangeiras, eu estava sempre em movimento e não sobrava tempo para fazer as minhas coisas. Eu carregava comigo uma câmera Super 8, que é uma espécie de caderno de notas e eu só podia usá-la entre trabalhos, enquanto eu estava me deslocando, sempre atrás de uma janela ou de um carro, ou de um avião, ou de um barco, e eu incorporei esse movimento dentro do meu registro. Isso ficou claro nessa exposição.
O deslocamento (e os locais) ditaram tua visão, não? O que Brasília te propiciou?
Brasília foi fundamental na minha formação e na minha experiência de vida e determinante em tudo que eu fiz depois. Entrei com uma esperança, com uma perspectiva em 1964, que foi brutalmente derrubada em 1965. Quando houve a demissão coletiva dos professores, ficamos na mão, mas nesse curto período que eu vivi a UnB, eu tive a chance de estar com as pessoas mais interessantes, mais importantes que moldaram o meu enxergar do Brasil e isso me marcou profundamente. Brasília até hoje é uma marca na minha vida que é indelével, está ali e eu gosto muito de ir a Brasília. Realizei dois filmes importantes que têm Brasília como tema. O primeiro é o Terceiro milênio, que é o retrato de um senador, um dos primeiros filmes sobre uma campanha eleitoral feita no início dos anos 1980, que termina em Brasília, no Congresso, e que já denuncia na época as mazelas do que estava acontecendo na Amazônia. Depois, no ano de 2022, eu fiz um filme autobiográfico no qual eu conto a minha história em Brasília no período que eu era estudante, que chama-se Utopia distopia.
Em termos de memórias, o que guarda de mais afetivo, quando revê? O que a idade te trouxe neste reciclar, e agregou?
O meu olhar afetivo, a minha memória, eu gosto muito. E eu acho que o meu trabalho todo, no fundo, é um trabalho de memória, porque refletindo sobre aquilo que aconteceu e aquilo que está acontecendo é que nos faz entender um pouco que perspectiva de futuro que a gente tem. É um pouco triste porque a gente nota que pouca coisa mudou, infelizmente. Algumas coisas mudaram, importantes, mas na essência continuamos com as mesmas dificuldades.
O olhar estrangeiro te municiou com quais ferramentas? E como crê que os gringos percebam o Brasil de hoje?
Eu não vejo muita diferença do olhar estrangeiro e do olhar brasileiro sobre o meu trabalho. O meu trabalho não foi feito focado para o estrangeiro ou focado para o Brasil. Eu fiz como uma forma de mostrar aquilo que eu queria contar. Eu acho que tanto faz o público. Eu não sinto que a leitura de alguém da Alemanha é muito diferente de alguém do Brasil. É claro que eu também me formei na Alemanha. Estudei com cineastas alemães importantes e trabalhei para a televisão alemã durante muito tempo na América Latina e no Brasil. Isso, obviamente, também me formou. Mas não mudou o meu olhar sobre as coisas. E, infelizmente, há uma certa tristeza, até uma frustração e notar que está tudo aí ainda. Aquilo que meus filmes apontaram nos anos '970, '980, os problemas ainda estão aí; só aumentaram, não foram resolvidos. Então, é um trabalho que tem que ser feito para as próximas gerações. Trago nessa exposição um olhar terno, é um olhar carinhoso sobre o Brasil dos anos 1970, 1980, e que eu acho que a gente tem que prestar atenção de que como era, como está e como vai ser; um olhar atento daquilo que a gente já viveu para não repetir.
Saiba Mais